Nova Guerra Fria Tecnológica nas Américas: Como Brasil e América Latina Escolhem seus fornecedores
- Guilherme Pereira Tavares

- 14 de nov.
- 10 min de leitura

A geopolítica do século XXI ganhou novas linhas de separação, agora desenhadas por chips, algoritmos e antenas de telecomunicação. A chamada “Nova Guerra Fria” tecnológica nas Américas destila-se de Washington a Pequim e chega, com força, ao coração da América Latina. Neste cenário, decisões técnicas e econômicas transformam-se rapidamente em escolhas estratégicas para o futuro das nações.
Na era da tecnologia, cada escolha de infraestrutura é também uma escolha política.
Com novas alianças, polêmicas e incertezas, vamos entender o que está em jogo e como Brasil, México, Argentina e Chile navegam por pressões globais para garantir desenvolvimento sem abrir mão da soberania digital. Apresentamos aqui análises aprofundadas, dados e relatos de bastidores que refletem a encruzilhada tecnológica do continente.
O que define a “Nova Guerra Fria” tecnológica nas Américas?
A Nova Guerra Fria não é uma simples briga comercial: trata-se de uma disputa global pelo domínio da tecnologia, onde o vencedor terá poder sobre redes, dados e, possivelmente, o futuro da economia mundial. Em vez de tanques e mísseis, batalham-se políticas de controle de semicondutores, domínio no 5G, liderança em inteligência artificial (IA) e influência sobre plataformas digitais. Países são chamados a escolher entre fornecedores chineses ou americanos, cada qual com seus interesses e condições.
O 5G foi o estopim, mas rapidamente ficou claro que este é apenas um dos muitos tabuleiros. Hoje, semicondutores formam a “espinha dorsal” de quase todo aparelho eletrônico. A IA avança sobre serviços, governos e empresas. Plataformas digitais controlam como nos comunicamos, compramos e até pensamos.

De onde vêm as pressões, e quem são os atores?
As pressões financeiras e políticas vêm de todas as direções. Temos, de um lado, estímulos e ofertas atrativas de tecnologia por parte de empresas chinesas como Huawei e ZTE. Do outro, autoridades dos Estados Unidos enviam recados duros – por vezes explícitos – para limitar ou até banir o uso dessas tecnologias, alegando riscos à segurança nacional.
Organizações multilaterais monitoram acordos e regulamentações.
Empresas locais de telecomunicações avaliam custos x benefícios.
Sociedade civil e governos discutem soberania de dados e privacidade.
Investidores internacionais reagem a cada movimento e ajuste regulatório.
Não se trata apenas de preferência comercial ou preço, mas do impacto potencial sobre economias inteiras, soberania política e relações externas.
O que está em jogo: soberania, economia e privacidade
Escolher um fornecedor de infraestrutura tecnológica para 5G, plataformas em nuvem, IA ou semicondutores pode definir o rumo de uma economia por décadas.A depender do lado escolhido, haverá implicações em três frentes:
Segurança nacional: acesso irrestrito a redes locais pode levantar temores de espionagem e coleta de dados.
Funcionamento da economia: preços mais baixos podem acelerar o acesso à tecnologia, mas a dependência extrema de um fornecedor pode criar fragilidades futuras.
Privacidade dos cidadãos: autoridades e ONGs temem que dados sensíveis possam ser transmitidos a países estrangeiros, sob diferentes leis de proteção.
Além disso, a forma como cada país negocia determina acesso facilitado a crédito, transferência de conhecimento e até manutenção do próprio poder político.
O Brasil: pragmatismo e busca por autonomia
O Brasil se destaca por sua postura pragmática, tentando equilibrar interesses. No leilão do 5G realizado em 2021, o governo Brasileiro não chegou a banir empresas chinesas, mas estabeleceu critérios rígidos para fornecedores, especialmente no núcleo da rede. O resultado foi um mix: operadoras optaram majoritariamente por equipamentos das duas principais rivais, mesclando as tecnologias.
Em semicondutores, a criação de polos industriais em Campinas e Porto Alegre visa fomentar certa independência, mas o país ainda depende fortemente de importações asiáticas. O Brasil também investe em regulamentação de IA, discutindo projetos de lei que buscam combinar inovação e responsabilidade.
No Brasil, a discussão é menos polarizada, mas não menos estratégica.
Nossas pesquisas mostram que, mesmo sob pressão internacional, há um desejo no país por autonomia e flexibilidade. Um estudo recente confirma o posicionamento flexível do Brasil, com 46% das autoridades defendendo múltiplos fornecedores (FIESP, 20221).
Na área de plataformas digitais, debates sobre tributos, proteção de dados e regulação do discurso continuam acirrados, e a nova legislação já alcançou aspectos relevantes do setor (saiba mais sobre as disputas digitais no continente).
México: proximidade geográfica, dependência e dilemas
O México é um caso emblemático. Pela proximidade geográfica, depende fortemente dos Estados Unidos para o comércio, sendo parceiro no USMCA (acordo Estados Unidos-México-Canadá). As pressões americanas sobre o uso de fornecedores chineses no 5G e nas redes críticas foram, até aqui, acatadas pelas grandes operadoras mexicanas.
No entanto, empresas de manufatura instaladas no país (especialmente fábricas de montadoras e eletroeletrônicos) usam equipamentos e softwares tanto da China quanto dos EUA. Isso expõe o México a possíveis retaliações tarifárias, além do risco de quebrar cadeias de suprimento se um dos lados restringir exportações de semicondutores ou outros componentes.
A legislação mexicana tem refletido a preocupação do país em proteger sua privacidade e dados, mas a fiscalização é considerada insuficiente por especialistas em privacidade digital (García, 20232).
Até quando o México conseguirá conciliar interesses sem sofrer impactos diretos?
Argentina: entre incentivos chineses e relações com o oeste
Os grandes acordos firmados por governos argentinos com empresas chinesas, principalmente para infraestrutura de telecomunicações, tornaram o país um destino prioritário de capital do leste asiático. O governo argentino também aposta na diversificação: firmou memorandos com fornecedores americanos e europeus para a expansão futura.
Cabe ressaltar que, apesar dos investimentos vultosos, parte da sociedade argentina teme o risco de dependência em áreas sensíveis, especialmente diante de possíveis sanções ocidentais caso o país incline-se somente à tecnologia chinesa.
Segundo dados do Ministério da Ciência, cerca de 60% dos equipamentos de 4G e 5G instalados recentemente vêm da China.
Nos debates parlamentares sobre IA e big data, há intenso embate entre propostas que buscam alinhamento com padrões europeus x americanos (Rodríguez, 2024
3).
Ao buscar vantagens econômicas, a Argentina enfrenta um dilema: ganhos de curto prazo versus riscos de isolamento estratégico.
Chile: pioneirismo digital sob observação internacional
O Chile consolidou-se nos últimos anos como laboratório para novas tecnologias na América Latina. Ao lançar um dos primeiros “corredores digitais” do 5G, atraiu interesse global e investimentos de diversos países. Empresas chinesas receberam destaque nas fases iniciais da implantação, mas, após negociações com Estados Unidos e União Europeia, o governo procurou diversificar ainda mais os fornecedores.
O Chile quer ser moderno, mas não deseja virar refém de
ninguém.
No legislativo chileno, a privacidade digital e a proteção de dados protagonizam debates acalorados. O país já aprovou uma lei robusta para proteção de dados pessoais em 2022, o que reflete as preocupações populares com vigilância e soberania (mais sobre a disputa EUA x China na região).
Movimentos recentes do Chile incluem participação em blocos regionais para compartilhamento de boas práticas regulatórias e defesa de uma agenda própria na pauta de IA.

Custos e benefícios: muito além do preço
Muitas vezes, governos e operadores privados enxergam apenas o custo inicial das soluções. É tentador adotar os equipamentos mais baratos, principalmente para países que precisam expandir rapidamente o acesso à internet e redes móveis. Contudo, o preço à vista não revela o verdadeiro custo ao longo de décadas.
A dependência tecnológica pode amarrar um país a interesses estrangeiros, impactar a inovação local e dificultar respostas rápidas em caso de crise mundial.
Benefícios: acesso rápido à tecnologia de ponta, redução do gap digital, atração de investimentos.
Riscos: baixa diversidade de fornecedores, vulnerabilidade em cadeias críticas, exposição política e econômica.
Além disso, há custos indiretos: riscos de sanções, queda de confiança de investidores, necessidade de adequar toda a legislação de proteção de dados sempre que um fornecedor altera suas regras ou sistemas.
Segurança nacional e vigilância: narrativas concorrentes
Os dois blocos – China e Estados Unidos (e aliados) – posicionam suas soluções como confiáveis, rápidas e inovadoras. No entanto, cada um deles acusa o rival de, supostamente, empregar técnicas de vigilância, espionagem ou acesso privilegiado a dados privados.
A discussão ganha força em audiências públicas e tribunais. Autoridades alertam que, ao escolher um fornecedor dominante para infraestrutura crítica, países podem abrir brechas para monitoramento indesejado ou interferências externas.
Ainda assim, especialistas lembram que riscos sempre existirão, não importando a origem dos sistemas. Por isso, cresce na região a ideia de:
Múltiplos fornecedores para evitar dependências absolutas;
Regulamentações locais mais fortes – inspiradas na Europa, que criou regras pioneiras de proteção de dados (GDPR);
Supervisão permanente, inclusive com auditorias internacionais.
No fim, a segurança nacional passa menos pela origem da tecnologia e mais pela transparência e competência das autoridades locais em fiscalizar e responder a incidentes.
Como as escolhas tecnológicas moldam o futuro das relações internacionais?
À medida que Brasil, México, Argentina, Chile e outros países tomam decisões sobre contratos de 5G, compra de chips e uso de IA, acabam reconfigurando suas alianças comerciais e políticas. Países que se alinham fortemente a um dos polos podem ganhar acesso facilitado a mercados, financiamentos ou transferências de tecnologia, mas também ficam expostos a eventuais rupturas diplomáticas ou imposição de sanções.
A história mostra que a adoção massiva de uma tecnologia estrangeira pode criar dependências duradouras, dificultando o desenvolvimento autônomo de setores estratégicos. Por outro lado, países que adotam postura mais flexível tendem a construir relações menos voláteis, ainda que eventualmente percam algum benefício imediato.
Discussões sobre soberania digital estão presentes não só em legislações nacionais, mas em fóruns multilaterais, indicando o peso crescente do tema na agenda global (entenda mais sobre geopolítica nas Américas).
Semicondutores, IA e grandes plataformas: novo dilema do século
Se no passado a escolha de tecnologia restringia-se a aparelhos ou softwares, hoje, semicondutores e IA determinam capacidade produtiva, competitividade internacional e possibilidades de defesa nacional.
O acesso a semicondutores de alto desempenho permite desenvolver equipamentos médicos, veículos autônomos, robótica e sistemas de monitoramento ambiental;
IA remodela saúde, educação, combate ao crime, compras públicas;
Grandes plataformas digitais influenciam comportamento de eleitores e usuários, além de controlar dados críticos.
Não há como ignorar que a tecnologia escolhida hoje pode limitar (ou expandir) a capacidade de inovação, crescimento econômico e influência internacional no futuro.
Para América Latina, fabricar chips de ponta é ainda um sonho distante. Mas parcerias, transferência de tecnologia e aposta em inovação local, como acontece com várias startups na região (descubra o avanço das startups latino-americanas), tornam-se apostas concretas.
Soberania digital: um desafio ainda em formação
A busca por soberania digital é recorrente em discursos oficiais, mas, na prática, avança em curvas. Leis como a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) no Brasil, e legislações equivalentes no Chile e Argentina, oferecem instrumentos para fiscalizar empresas e proteger os dados dos cidadãos.
Porém, regulação sem capacidade técnica para fiscalizar tende a ter eficácia limitada. São comuns os relatos de dificuldades para realizar auditorias técnicas, aplicar sanções rápidas ou adotar medidas de bloqueio temporário de empresas que descumprem exigências.
A verdadeira soberania só se conquista quando há transparência, fiscalização forte e controle dos fluxos de dados.
Governos da região buscam equilibrar inovação e controle, temendo que legislações excessivamente restritivas afuguentem investimentos. Por outro lado, um ambiente pouco regulado pode minar a confiança do cidadão e a reputação internacional dos países.

Dúvidas, receios e debates em andamento
Nossas pesquisas apontam que muitos gestores públicos, empresários e cidadãos ainda sentem insegurança quanto ao panorama futuro. Algumas perguntas são recorrentes:
“Até que ponto confiamos nas garantias dos fornecedores de que dados estarão protegidos?”
“Há tecnologias de auditoria suficientes?”
“O que fazer frente às ameaças de sanções ou bloqueios externos?”
“Estamos nos antecipando às tendências ou apenas reagindo ao que chega de fora?”
Há fortes indícios de que, nos próximos anos, o ambiente latino-americano verá maior competição entre blocos e tentativas de criar soluções locais para diminuir dependências externas.
Consequências de longo prazo para o continente
Ao escolher agora, cada país pode estabelecer padrões e princípios que tendem a persistir no médio e longo prazo. Interoperabilidade, fluxo livre de dados, garantias mínimas de privacidade e mecanismos de supervisão estarão em pauta por muitos anos.
O risco de retrocesso existe, caso governos optem por fechar o mercado ou criar obstáculos à inovação.Por outro lado, há oportunidades reais para empresas locais ganharem espaço com soluções próprias ou parcerias mais equilibradas.
No limite, essas escolhas podem afetar inclusive áreas estratégicas para o futuro do continente, como sistemas de defesa, combate ao crime, saúde, gestão ambiental e educação.
É possível, inclusive, que novas coalizões regionais surjam para defender interesses comuns, criar centros de pesquisa interligados e dialogar de igual para igual com os grandes polos globais (veja como a diplomacia regional pode se reinventar).
Os interesses em jogo: empresas, governos e sociedade
Na mesa da “Nova Guerra Fria”, cada jogador possui motivações próprias.
Empresas globais buscam expandir mercados e garantir contratos de longo prazo na América Latina.
Governos tentam assegurar crescimento ao menor custo, evitar escândalos de fuga de dados e manter alguma margem de manobra diplomática.
Sociedade civil exige transparência, proteção de privacidade e acesso garantido a novas tecnologias.
Plataformas digitais, como marketplaces e redes sociais, já se tornam campo de disputa política e regulatória.
Muitas vezes, interesses conflitantes aparecem: mais segurança pode significar menos liberdade, mais inovação pode gerar riscos à privacidade. Encontrar o equilíbrio exige diálogo aberto e decisões pautadas por dados, não apenas por pressões externas.
Produtos e infoprodutos recomendados sobre tecnologia, geopolítica e inovação
A Grande Guerra Tecnológica: Revolução, Dados e Poder Global – Livro essencial para compreender as disputas digitais mundiais.
A Guerra pelo 5G: Impactos Geopolíticos Globais – Livro com análises aprofundadas sobre o 5G e América Latina.
Curso Online: Geopolítica da Tecnologia Latino-Americana (Hotmart) – Aprenda sobre as transformações tecnológicas e seus reflexos na política da região.
Planos, alertas e aprendizados para a América Latina
O processo de escolha tecnológica na América Latina está longe de alcançar consenso rápido. Países seguem testando modelos híbridos, tentando criar marcos legais, atraindo investimentos e aprendendo com erros e acertos dos vizinhos.
Aprendizados ganham força: Acesso à tecnologia não pode comprometer independência nacional. Transparência e governança são fundamentais para manter a confiança pública. Fomentar a inovação local reduz vulnerabilidades futuras. Diálogo aberto com todos os atores evita decisões precipitadas.
No centro da Nova Guerra Fria tecnológica nas Américas está um desafio: transformar os riscos em oportunidade para avançar o desenvolvimento regional, sem perder o controle digital do próprio destino.
Cada escolha de tecnologia de hoje traça o caminho do futuro latino-americano.
Apoie o blog Bom dia América para receber análises exclusivas e conteúdos que ajudam a entender os dilemas do nosso continente.
Referências
FIESP. Fórum de Inovação e Desenvolvimento 2022. Relatório de Cibersegurança e Infraestrutura Digital. São Paulo: FIESP, 2022. Disponível em: https://www.fiesp.com.br/
GARCÍA, I. Políticas de Protección de Datos y Soberanía Digital en México: Análisis y Perspectivas. México DF: Editorial UNAM, 2023.
RODRÍGUEZ, M. Inteligencia Artificial y Legislación en América del Sur. Buenos Aires: PU-Ciências Sociais, 2024.




Comentários