Cúpula UE-CELAC: como sair do pragmatismo para uma aliança real?
- Guilherme Pereira Tavares

- 9 de nov.
- 8 min de leitura
Atualizado: há 3 dias

O encontro marcado para novembro, em Santa Marta, Colômbia, entre a União Europeia (UE) e a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), será mais do que uma agenda protocolar. Será um verdadeiro teste: conseguirão Europa e América Latina transformar anos de pragmatismo em uma aliança que responda, de fato, às prioridades comuns e aos desafios do século XXI? Em um mundo pressionado pelo iliberalismo, tensões geopolíticas e protecionismo econômico, esse diálogo ganha contornos decisivos.
A próxima Cúpula UE-CELAC pode redefinir o destino coletivo das regiões.
Nós começamos essa análise entendendo que, por trás das declarações oficiais e dos números expressivos, existe um desencontro entre discurso e prática que só poderá ser superado por avanços concretos, articulação política aprimorada e valorização de interesses compartilhados, com respeito à diversidade e às realidades locais.
Os bastidores de Bruxelas e a difícil reinvenção da parceria
Quando os líderes da UE e da CELAC se reuniram em Bruxelas, em julho de 2023, após oito anos de silêncio de alto nível, muita expectativa estava no ar. De ambos os lados, havia uma compreensão clara: a pausa longa precisava ser superada. No entanto, o reencontro não foi um retorno ao passado, nem uma aposta firme nos valores, e sim, um ajuste prático em função de interesses convergentes, como a transição energética e a digitalização econômica ultra conectada.
Apesar disso, experimentamos uma sensação de déjà vu. Ficou evidente que a CELAC, com sua natureza intergovernamental, ainda patina para articular posições comuns. Isso ficou especialmente exposto quando tratamos da crise na Venezuela e, principalmente, durante o debate acalorado sobre a guerra na Ucrânia, que resultou numa declaração final pouco incisiva. O cuidado, nesse caso, foi o de manter as portas do diálogo abertas, ainda que sacrificando consensos robustos.
Do lado europeu, houve uma clara estratégia de diversificação: ora firmando acordos inter-regionais (como com o Mercosul), ora aprofundando relações bilaterais (com México e Chile). Desde então, avanços importantes têm sido registrados. A assinatura do acordo UE-Mercosul, que ficou 25 anos em negociação, simboliza uma nova era de liberalização comercial, acesso garantido a matérias-primas estratégicas e inserção de cláusulas para promover valor local.

Além disso, os acordos modernizados com México e Chile trouxeram como benefícios cortes tarifários, mecanismos de combate à corrupção, incentivos ao desenvolvimento regional sustentável e estímulos à participação latino-americana nas cadeias globais de valor.
A porta giratória da pragmatismo: discursos x ações na Cúpula UE-CELAC
Nos últimos anos, as iniciativas da UE, notadamente o Global Gateway, ganharam destaque como nova promessa de investimento bilionário para América Latina, fundamentalmente voltado para a descarbonização das economias. No entanto, a crítica persistente, baseada em dados da Oxfam (OXFAM International. Um Novo Marco nas Relações UE-América Latina, 2023), é que essas ações refletem, majoritariamente, prioridades do lado europeu.
82% dos recursos globais do Global Gateway foram comprometidos em projetos de energia verde e digitalização.
Apenas 16% direcionados para saúde e educação.
Forte concentração dos fundos em poucos países, sobretudo no Brasil.
Mais preocupante, no entanto, é o uso de fundos já existentes, ao invés da criação de novos fluxos financeiros. Segundo relatório consolidado pela Counter Balance, Eurodad e Oxfam (Oxfam International et al, Monitorando a Implementação do Global Gateway, 2024), há falta de transparência nos critérios de seleção dos projetos e pouca participação efetiva dos atores latino-americanos no processo decisório.
A diferença entre dizer e fazer pode minar a confiança e o potencial transformador da parceria.
À espera de comprovações práticas, o Global Gateway permanece como uma plataforma em teste. Só avançaremos se os países latino-americanos puderem moldar os projetos desde o início; e não apenas receber investimentos “prontos”.
O contexto internacional e a tempestade perfeita na Cúpula UE-CELAC
A preparação para a Cúpula deste ano ocorre sob o impacto de algumas mudanças que alteram bruscamente o ambiente internacional. O retorno de Donald Trump ao comando dos EUA força a Europa a recalcular rotas em suas alianças externas. Isso significa, na prática, rever sua aproximação com parceiros tradicionais como a América Latina, diante de incertezas quanto ao futuro das relações transatlânticas.
No hemisfério sul, as divisões políticas se acentuam, impulsionadas por ciclos eleitorais recentes e pela própria influência do modelo trumpista nas Américas. As respostas são diversas: há países que flertam com a agenda iliberal; outros tentam ampliar a resistência à interferência estrangeira ou afirmam novos nacionalismos.
Temos acompanhado esse cenário em análises anteriores (o papel do modelo MAGA e seus reflexos na região). Fica claro que a CELAC, ao mesmo tempo organismo de integração e palco de divisões, precisa se reinventar para ser mais do que um fórum consultivo.

Diante desse contexto delicado, a Cúpula em Santa Marta será também um espaço de experimentação, para ver se é possível caminhar além de estratégias defensivas e encontrar focos reais de convergência.
O interregionalismo verde: uma oportunidade concreta?
Uma das áreas em que o pragmatismo diplomático pode ser superado é a transição energética. Aqui, o chamado “interregionalismo verde”, fundamentado no diálogo multilateral e projetos conjuntos para enfrentar as mudanças climáticas, surge como um novo vetor de cooperação.
No entanto, precisamos ser críticos: sem participação ativa dos países latino-americanos, há risco de repetirmos lógicas do passado, em que a América Latina vira apenas fornecedora de matérias-primas para cadeias industriais de fora.
Projetos de energia renovável devem incluir transferência de tecnologia.
É essencial mecanismos de formação de mão de obra local nas cadeias de energia limpa.
Políticas conjuntas precisam proteger comunidades afetadas e garantir sustentabilidade social.
A presidência colombiana da CELAC, mesmo marcada por desafios internos enfrentados por Gustavo Petro, pode impulsionar um novo ciclo nesse sentido. O papel de mediação da Colômbia pode ser decisivo para pautar demandas latino-americanas na agenda comum e ressaltar o compromisso com desenvolvimento sustentável.
Só haverá cooperação verdadeira se houver ganhos mútuos para as populações de ambos os lados do Atlântico.
A questão da representatividade: por que a CELAC ainda enfrenta obstáculos?
Na prática, a CELAC ainda se mostra insuficiente para articular posições robustas e autônomas no xadrez internacional. Esse desafio ficou patente durante a recente crise venezuelana, quando a incapacidade coletiva de agir frente à pressão geopolítica externa mudou o rumo das negociações, e o mesmo se repetiu diante das divergências sobre a Ucrânia.
A ausência de uma voz única dificulta respostas assertivas e multiplica obstáculos ao diálogo com a UE, cujas instituições são mais integradas e eficientes na formulação de posições. Isso indica que, para avançar além do pragmatismo, é necessária uma profunda reforma dos mecanismos de integração latino-americanos.
Busca de consensos mínimos para garantir representatividade.
Maior autonomia frente a impulsos externos, sejam dos EUA, China ou Europa.
Promoção de uma identidade comum sem diluir diversidades nacionais.
Essas questões tornam a agenda de Santa Marta ainda mais relevante para o papel da CELAC como voz latino-americana no mundo.
Caminhos para sair do pragmatismo: pilares de uma aliança real
Passamos, então, a refletir sobre os elementos que podem elevar a relação UE-CELAC de um arranjo tático a uma verdadeira aliança estratégica.
Transparência e co-protagonismo: Os projetos do Global Gateway e similares precisam corresponder a demandas locais, com transparência sobre fontes, critérios e beneficiários dos recursos.
Participação efetiva: Os países da América Latina devem ser incluídos em todas as etapas, do planejamento à execução, dos grandes investimentos.
Diversificação das pautas: Para além dos pilares ambiental e digital, é preciso abrir espaço para temas como migração, segurança alimentar, combate ao crime organizado e cooperação em saúde.
Vínculo com iniciativas regionais: Estímulo à integração intra-latino-americana e valorização de espaços de diálogo genuíno, capazes de fortalecer também a voz da região no sistema internacional.
Nossos estudos sugerem que apenas com uma estrutura multipolar e participativa será possível avançar, de fato, juntos. A América Latina precisa deixar de ser vista apenas como “parceira potencial” e ser tratada como coautora dos projetos globais.
Críticas ao Global Gateway: inconsistências e riscos
Se olharmos com atenção os relatórios das organizações mencionadas, percebemos vários pontos sensíveis sobre a condução do Global Gateway:
Centralização na Europa: A seleção dos projetos fica majoritariamente nas mãos de instituições europeias.
Dificuldades de acesso à informação: Governos, sociedade civil e até empresas latino-americanas têm acesso limitado aos detalhes e requisitos dos editais.
Baixa participação local: Em muitos projetos-chave, dos 134 anunciados em 2023, apenas 11% tinham participação majoritariamente latino-americana nas etapas de formulação (Oxfam International, 2024).
Promoção de interesses econômicos/geopolíticos europeus: Projetos prioritários são escolhidos em função da segurança do fornecimento de minerais críticos, energia e abertura de mercados para empresas europeias.
Essas limitações colocam em xeque o caráter transformador do Global Gateway. Sem ampliar a transparência e comprometer-se com a gestão compartilhada, a iniciativa corre o risco de repetir padrões assimétricos, como muitos já vivenciados no passado colonial e republicano.
Para um aprofundamento sobre os riscos de uma agenda de investimento que não dialoga com os interesses latino-americanos, recomendamos a análise “Globalização MAGA e a Recolonização Silenciosa” (mais detalhes).

Temas para além da transição energética
Focar apenas nas questões energia-verde e digitalização não basta. Migração descontrolada, avanço do crime organizado, insegurança alimentar e crises de saúde pública continuam sendo temas urgentes para as sociedades latino-americanas.
A ausência dessas pautas fundamentais no topo das discussões UE-CELAC cria, não raro, a impressão de que “os problemas de verdade” não estão na mesa. Um diálogo multitemático, que incorpore demandas reais dos países do sul global, pode renovar a confiança e ampliar a legitimidade da aliança.
Para quem deseja se aprofundar nessas dinâmicas, sugerimos acompanhar nossa discussão sobre as parcerias estratégicas das Américas e novos tabuleiros globais.
A Colômbia como laboratório?
A presidência colombiana da CELAC, que sedia a Cúpula, é marcada por uma dualidade interessante: enquanto o presidente Gustavo Petro enfrenta turbulências políticas internas, o país serve como importante elo entre América do Sul, Caribe e Europa.
O governo colombiano almeja protagonismo ao defender a transição energética justa e colocar o meio ambiente no centro da pauta. Seja como for, espera-se que a Colômbia consiga consolidar um papel de liderança, permitindo à CELAC vocalizar posições próprias e ultrapassar meras respostas a iniciativas externas.
O que aprendemos com diferentes experiências latino-americanas inspira o debate para Santa Marta: é preciso desatar os nós da integração e transformar a CELAC em vetor ativo de consulta, decisão e implementação de políticas regionais.
Reflexões para uma nova aliança UE-CELAC
Ao analisar a trajetória recente, chegamos à conclusão de que só haverá avanço real se a parceria sair de slogans e aterrissar nas prioridades efetivas das sociedades. Isso passa por:
Adoção de compromissos claros em inclusão social, combate à corrupção e fortalecimento institucional;
Ampliação da participação da sociedade civil e de atores subnacionais;
Maior foco na educação e na saúde, não apenas como “anexos”, mas como pilares centrais do desenvolvimento;
Criação de mecanismos de monitoramento independente dos projetos financiados.
Caminhos para além do pragmatismo: recomendações
Baseando-nos em dados recentes e observações diretas, elencamos recomendações para transformar o reencontro em Santa Marta no início de uma fase mais madura:
Construir plataformas compartilhadas de decisão, com participação proporcional de ambos os lados.
Adotar uma abordagem flexível para lidar com diferenças políticas, sem sacrificar valores mínimos históricos.
Incluir temas-chave latino-americanos na pauta, em vez de apenas reagir a prioridades eurocêntricas.
Estimular novos mecanismos de integração regional latino-americana, para que a CELAC seja mais protagonista.
Monitorar e fiscalizar de forma independente os investimentos, garantindo que promovam inovação e inclusão.
O futuro da relação UE-CELAC depende do equilíbrio entre interesses nacionais, regionais e as expectativas de seus povos.
Conclusão: A cúpula de Santa Marta como divisor de águas?
O que está em jogo, em Santa Marta, vai além de notas oficiais. O contexto global exige uma resposta robusta às pressões externas e abre janela para uma nova engenharia de alianças. Cabe à UE admitir que o desenvolvimento latino-americano não deve ser apenas acessório de suas estratégias, mas propósito central. O hemisfério americano também precisa fortalecer mecanismos próprios de integração, para dialogar de igual para igual.
Se a Cúpula de Santa Marta traduzir compromissos em ações, veremos o início de um novo ciclo. Se repetir os padrões, será somente mais uma oportunidade perdida em tempos de urgência.
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Referências:
OXFAM International. Um Novo Marco nas Relações UE-América Latina. Oxfam Policy Papers, 2023.
Oxfam International; Counter Balance; Eurodad. Monitorando a Implementação do Global Gateway. Relatório Conjunto, 2024.
Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Documentos oficiais. Disponível em: <https://celacinternational.org/>. Acesso em: 10 jun. 2024.




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